terça-feira, 18 de abril de 2017

Conto

Uma menina muito jovem pousava os olhos em mim. Olhos vítreos, translúcidos, transparentes. Dentro deles havia a luz das essências. Respondi com um sorriso tímido. A beleza da menina me espantava. O universo todo incentivava os meus passos na direção daquele olhar convidativo. Não conseguia, meus pés estavam presos no gelo das emoções. Parece que sabemos das similitudes no instante perfeito. Havia estrelas naquele descampado cheio de pessoas iludidas pelas canções que ecoavam de um carro qualquer. Meu amigo, ao meu lado, percebeu o olhar da menina, e me incentivou a pousar naquelas graças iluminadas. Não tive coragem. Mas o sopro do universo veio com as suas magias na boca do momento. Meu amigo adiantou-se rumo à menina que parecia usar os instintos mais profundos para entender as primeiras palavras dele. Claro que diante da beleza as ideias ficam ofuscadas, e não foram diferentes, as ideias que adentraram as inspirações do meu amigo. Esse não se fez de rogado ao tentar investir na menina que olhava em outra direção. Tudo bem. O universo manda na ordem das coisas. Meu amigo voltou pálido. Disse da menina coisas estranhas, coisas que logo decifrei com laivos da mentira. Passados alguns minutos, voltei a cruzar-me com aqueles olhares feéricos. A sagacidade do desejo brotou na menina a coragem de avançar as linhas do desconhecido. Foi quando estava sozinho que ouvi o sonido quente de uma boquinha vermelha parecida com um morando maduro. “Sozinho”? Perguntou a pequena que se lançava no universo. Amei. Disse logo que estava gélido, ao que ela tocou as minhas mãos para provar que ela também estava. Sorrimos um ao outro com uma leveza de flores. Reconhecimento, reencontro na clara luz da noite. Convidei-a para darmos uma volta, e sob uma árvore perdida paramos os nossos corpos quentes, suados mais pela a atuação do desejo que pela caminhada breve. Sua boca tinha sabor de mel. Os toque delicados que trocamos estavam cheios de respeito. Toques carregados de magia, toques imortais na minha poesia. Então, começamos a namorar. 2 Ela me ligava quase todos os dias quando começamos a namorar. Às vezes em horários inusitados o telefone tocava e uma voz melíflua logo era reconhecida como sendo da menina mais doce que conheci. Nosso primeiro reencontro foi sob-holofotes de transeuntes que não paravam de observar-nos. A paixão causa não só curiosidade como vontade de ter e estar entre laços tão divinos. Ela usava roupas extremamente sensuais. E jamais vou me esquecer de um coelho bordado em sua calça muito curta para a época. Lembro-me também que usava de pretexto tocar o animalzinho antes de tocar aquela pele fresca. Mas logo a menina impedia sorrindo cristais pelos olhos. “Não me toque”. Essas palavras subiam às minhas entranhas afogueando a minha face penitente. Aquelas palavras me convidavam ainda mais a penetrar-lha nas profundidades ocultas. Foi nessas divagações distantes que comecei a sofrer por uma ascendência moral que vinha visitar-me. “A menina é extremamente jovem, I...”. Voltava das divagações com a menina diante de mim impedindo as minhas mãos que escalavam a cada encontro mais distante aquele corpo que cheirava a morango doce. Minha consciência pesava hermeticamente sobre as minhas “ousadas” tentativas de ir mais longe. O pior, e o que corroborou na minha decisão que logo se verá, foi o telefonema de sua mãe. Ela estava completamente preocupada com a filha que não comia, nem dormia mais. Queria saber da família as suas virtudes. Minha mãe tentou acalma-la, mas não foi o suficiente. As mães conhecem os filhos. Fiquei estarrecido. Sabia de fato que a menina queria consumar o nosso envolvimento, mas sabia também que a luz que batia na minha consciência era forte demais. E foi essa luz que me fez romper o namoro que até ali duraram três meses. A pobre menina ajoelhou-se com lágrimas que sempre vão escorrer, na verdade, pelo meu rosto. Pobre menina. Sua mãe chegou a ligar e pedir uma vizita a pobre que definhava. Mas achei melhor não fazê-la, pois em vez de ajuda-la, jogá-la-ia ainda mais no fosso. Fiquei realmente triste. 3 Passaram uns dois ou três anos quando uma bela tarde de primavera o telefone tocou. A voz melíflua que nunca saiu da minha cabeça começou a ser ouvida em suas dimensões mais profundas. “Oi, I....” É a A..... lembra de mim?”. Fiquei aturdido, mas respondi logo que sim, que lembrava dela perfeitamente. “Preciso dizer que esses anos foram duros para mim.. Arrumei um namoro que agora me dá um filho. I... Hoje vou me casar. Quero apenas te dizer algo. “Se disseres que me ama, desço do altar”. Mergulhei no passado, refleti no presente, e lembrei-me do quanto era bela aquela menina, e do quanto a doçura parecia ainda envolver-lhe os encantos. Disse a ela que sentia muito, que havia esperado seu crescimento, mas um namoro repentino com outra pessoa impedia a minha resposta positiva. Mas confesso que fiquei tentado, muito tentado. Podia ter mantido contato com ela, podia ter esperado o seu crescimento, mas as coisas seguem uma cadência que não entendemos bem. Eis o universo. Aprendi algo com esse precioso telefonema. Aprendi que qualquer pessoa não esquece o primeiro amor. Aprendi também que a perda da virgindade não é o que fica na memória e sim o primeiro amor da gente. Com o tempo descobri que a minha resposta negativa a menina foi um erro, pois nunca deixei de ama-la. 4 Passaram-se quinze anos, quando numa noite de sábado, outra amiga me telefonou me convidando a uma pequena festa em sua casa. Essa amiga, muito espiritualista, ria de alegria ao falar de mim aos seus convidados daquela noite. Entre riso disse o meu nome alto. O casal que estava lá ficou mudo. Mais tarde conversando com essa minha amiga, ela me disse que os dois entraram numa verdadeira altercação. E foi por causa do marido que a minha amiga apressou-se em impedir a minha ida a sua casa. Lá encontraria nada mais, nada menos que A...! Fiquei feliz de saber o paradeiro daquela que ficara gravada nas entrelinhas do meu universo. Fiquei sabendo através da minha amiga que ela adora Nazareth, e em especial a música Love Hurts. Em relação a essa música, um dia, numa casa abandonada, achei um pequeno vinil com apenas duas músicas, uma dela é o Love Hurts do Nazareth. Minha amiga conta coisas que a surpreendem demais, como o fato de a menina, que virou mulher, ser extremamente bondosa, e o marido, tirano. Tiro dessa história lições que não acabaram. E quem sabe a quais universos poderão continuar...beijos

6 comentários:

  1. O amor sempre nos apresenta inúmeras facetas que não podemos ignorar nenhuma delas... O Universo conspira sim... Um dia... quem sabe? Um conto da vida real, Ives!
    Abraço.

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  2. Belo conto. Com ar de real. Igualzinho assim. muitas e muitas histórias fazem de alguém uma motivação. Abçs

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  3. Adorei o conto, parece que você viveu essa historia, ou simplesmente foi coisa da mente de um poeta, gostei muito.
    Abraços.

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  4. Exatamente... parece que você viveu a história. Um conto de amor, mas com suspense! Mais uma história linda de amor. Mas que pena...seria um amor lindo.
    Bjos, Ives.

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  5. São tramas do destino....aquele "quase", aquele "se" e tudo seria diferente...mas quem sabe?
    Um abraço

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